"Memorial do Convento" - José Saramago

O "Memorial do Convento" tem como principais linhas narrativas aquelas que são apresentadas na contracapa do livro: "Era uma vez um rei que fez promessa de levantar um convento em Mafra. Era uma vez a gente que construiu esse convento. Era uma vez um soldado maneta e uma mulher que tinha poderes. Era uma vez um padre que queria voar e morreu doido. Era uma vez.".

Assim, este romance histórico começa por retratar o problema com que a família real portuguesa se deparava no dealbar do século XVIII: as dificuldades na conceção de um herdeiro para a coroa. A preocupação do rei leva-o a aceder à sugestão de um frade franciscano e a prometer a edificação de um convento caso Deus o abençoasse com descendência. Como, depois disso, a rainha consegue engravidar, iniciam-se os preparativos para a construção de um convento em Mafra. Nesta construção virão a trabalhar milhares de homens, entre os quais Baltasar Sete-Sóis, um antigo soldado que tinha perdido a mão esquerda na guerra. Contudo, antes do seu regresso a Mafra, a sua terra natal, Baltasar passa algum tempo em Lisboa, onde conhece o padre Bartolomeu Lourenço, também conhecido por "Voador", pelos seus projetos de máquinas que permitiriam ao Homem voar, e Blimunda Sete-Luas, que consegue ver as pessoas por dentro.

Conjugando habilmente uma história de amor puro, um retrato da época pormenorizado, uma crítica social mordaz, uma perspetiva popular de um dos períodos mais marcantes da História portuguesa e uma passarola voadora movida a vontades, Saramago constrói um romance magnífico, que é de leitura obrigatória para os alunos do 12º ano de escolaridade.

Confesso que, antes de iniciar esta leitura, a receava. Isto devia-se à consciência de que José Saramago escrevia de uma maneira bastante peculiar, usando vírgulas no lugar de pontos finais e travessões. Contrariamente ao que receava, o registo de Saramago não dificultou a leitura, antes ajudou a torná-la especial. A colocação perfeita das vírgulas permite que as frases fluam pelas páginas, embalando o leitor na sua jornada pelo reinado de D. João V.

Esta época histórica é retratada fiel e detalhadamente pelo autor, desde a vida da família real e da corte às procissões religiosas e às condições de vida do povo. Algumas descrições, de tão ricas em pormenores, são um pouco aborrecidas, como é o caso das procissões e das deslocações da família real.

A inserção de provérbios e expressões populares no discurso proporcionam uma aproximação entre o leitor e o narrador, para além de realçar a sua perspetiva popular ou assinalar uma certa ironia. Esta está, aliás, muito presente no discurso saramaguiano, sublinhando a crítica que a ele está subjacente, que tem como alvos a Inquisição, a Igreja e os autos de fé, as convenções sociais, os protocolos da corte, as touradas e os gastos exorbitantes e irresponsáveis da Coroa.

O contraste das relações entre o rei e a rainha e entre Baltasar e Blimunda realça a diferença entre uma história de amor por conveniência e uma de amor verdadeiro, constituindo um panegírico da simplicidade dos amores genuínos.

O desfecho inesperado e comovente encerra com chave de ouro um romance simultaneamente emocionante e enriquecedor. Um ícone da literatura portuguesa.


a diferença que há entre tijolo e homem é a diferença que se julga não haver entre quinhentos e quinhentos, quem isto não entender à primeira não merece que lho expliquem segunda. »


são os sonhos que seguram o mundo na sua órbita »


a grande, interminável conversa das mulheres (...), nem eles imaginam que esta conversa é que segura o mundo na sua órbita, não fosse falarem as mulheres umas com as outras, já os homens teriam perdido o sentido da casa e do planeta »


e circulavam burros à nora, de olhos tapados para terem a ilusão de caminhar a direito, não sabendo, como não sabiam os donos, que andando realmente a direito também acabariam por vir parar ao mesmo lugar, porque o mundo é ele uma nora e são os homens que, andando em cima dele, o puxam e fazem andar. »

© 2020 Helena Rodrigues, Portugal
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